1.
varrendo o chão da cozinha eu perdi algumas palavras
ficaram no meio da sujeira de restos de comida, de papel, de cacos
empilhados nos cantos de uma casa em erupção
onde moro com outras 4 mulheres
quase todas brancas
("quese" porque uma delas é obviamente indígena mas faz questão de mostrar seu cosmopolitismo
nas roupas que veste, a música que escuta, os perfumes, como come)
y então há eu
a que perde palavras enquanto varre o chão da cozinha
a que se sente absolutamente sozinha num domingo ensolarado
pensando em problemas que entram de fora pra dentro
em problemas que saem de dentro pra fora
que ficam
que marcam
pensando compulsivamente nas mesmas frases repetidas
uma que falei errado porque se a preta não entendeu
sobre não sair da cama, falei errado ou ela não entendeu?
não era vitimização, era admiração pela fortaleza...
mas tem ainda a outra, a mais principal da estação,
a primeira mulher que amei e com quem, pela primeira vez na vida, não me senti roubada depois de trepar¹
me dizendo que sempre digo que quero dizer uma coisa quando disse outra
e todas essas coisas, essas frases repetidas, esse padrão torto, minhas palavras tortas,
me fazem pensar 'não vou mais nem tentar'
y agora meus poemas são meu voto de silêncio.
escrevo pensando nas pessoas pretas espalhadas por aí
que de alguma forma estamos todas conectadas pelo quê além de
abuso sexual na infância, estupro, pobreza, alcoolismo, famílias se matando pra ficar juntas
raiva de nossos cabelos virando amor por nossos cabelos
raiva de nossas peles virando amor por nossas peles
raiva de nós mesmas por não nos amarmos o suficiente, sempre em escalas:
'pouca tinta', 'não se pode dar esse luxo', 'conservadoras', 'privilégio patriarcal', 'prioridade'
(de novo a coisa dos fluxos entre dentro y fora
de novo as ferramentas do sinhô em nossas mãos
apontando contra nossos próprios corações
amor virando raiva de nós mesmas)
?
conectadas pelo quê?
mas tenho medo de cavar isso porque pode acabar com a mágica
escrevo pensando 'nunca mais vou relatar, nunca mais'
mas não dividir a dor faz ela parar de doer?
não faz nem doer menos.
e "viver sem dividir não é viver" é quase uma oração pra mim.
eu não sei de onde vim
de que pedaço exato de um continente longe
exaurido
que resiste a isso com sangue mas também com mágica
eu não sei o nome do bisavô da minha vó
eu não sei que língua falava essa gente que me deixou esse rastro de sangue, de pele
eu não sei por onde começar a procurar mas tenho procurado
dentro de mim mesma, nas minhas tias, no meu pai cantando na cozinha o dia todo
nas minhas amigas
nos poucos amigos que ainda valem o esforço
no meu irmão
na minha irmã
em poemas escritos por outras pretas, ouvindo racionais
mas eu nunca estou tranqüila
é porque não sei bem de onde eu vim?
é porque também uso as ferramentas?
é porque sempre dá errado quando me apaixono?
é porque a humanidade é inviável
com tantos carros, poluição, desconfiança, dinheiro, morte no trânsito, no churrasco, nas inundações?
por que é?
percebo que estou ficando velha não pelos aniversários
mas pelas vezes que me parto por dentro
por ir abandonando alguns sonhos
por ir ficando mais dura, desconfiada, cansada de conversar
tenho medo de ficar tranqüila demais porque isso pode ser o momento anterior ao
entorpecimento confortável do cinismo
mas percebo que tem muita gente que só tá vivendo porque é cínica
(elas diriam 'sobrevivendo', também cinicamente
uma única lágrima quase forçada a cair do olho direito)
vou ter estômago pra isso?
me entregar à assimilação?
acho engraçado que alguém ache que 'sobreviver' é o termo adequado
quando, de onde vejo, estão mal y toscamente subvivendo
abaixo, mesmo, do que sinto ser minimamente necessário pra viver...
'dignamente', se vocês quiserem
também é inadequado
mas estou com preguiça de tentar um termo mais justo
e ainda o fantasma da 'mais especial da estação' podendo sempre me repreender por nunca conseguir dizer o que quero dizer? ah, preguiça.
enfim
enfim
hoje é domingo
domingo de sol
solidão mata mais gente que aborto
mas ainda assim tem muita mulhere morrendo por abortamento inseguro
então o estado diz que 'o que falta é educação sexual para contracepção'
o estado sendo representado por um monte de homens brancos cristãos parlamentares carnívoros heterossexistas
você acreditaria em qualquer coisa que dissessem?
nem eu².
domingo de sol
tédio mata mais gente que o trânsito
mas ainda assim o trânsito mata, e tudo o que a repórter consegue dizer sobre isso é:
cada morte no trânsito custa para os bolsos da união 182 mil reais.
então pronto, descobrimos quanto vale uma vida. mas só depois que for tirada pelo trânsito, ok?
porque antes
ela não vale nada.
domingo de sol
cinismo mata mais gente que o câncer
mas um mata tão devagar quanto o outro que
eu tendo a achar que são coisas interrelacionadas.
domingo de sol
a prática de tortura foi proibida por lei em 97
ainda assim a polícia de salvador é uma das mais violentamente racistas do país
tortura a olhos vistos, no pelourinho
imaginar o que acontece nas cadeias dá desespero
mas as próprias cadeias não tinham que ter sido abolidas com a lei de 97?
domingo de sol
falta de cuidado mata mais que corações partidos
y coração partido dói, mas também dói ver que
até "feminismo" pode virar uma justificativa inteligente pra sermos escrotas.
domingo de sol
etc etc
1. como sempre me aconteceu com caras
2. ou "eu também não"?