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Mulheres Trans EO Movimento FeministaMulheres trans e o movimento feminista Por Aline de Freitas Exceto em situações específicas, eu não costumo usar o adjetivo trans ou transexual como identificador de “quem sou eu?” Essa é uma atitude muito extremamente pessoal que contrasta com muitas mulheres e homens trans militantes que conheço. Porque? Porque na maioria dos contextos cotidianos, na maioria das atividades com que me envolvo, se elas não tem uma relação com a questão da transexualidade, penso que não há motivos para que eu me apresente como tal. Porque entendo que a única relevância da nossa constituição como homens ou mulheres se dá pelas relações sociais. Se eu sou uma mulher, se me entendo, percebo, me apresento e vivo como tal, o par de cromossomos que carrego, o sexo de registro no meu nascimento, a morfologia da minha genitália, são questões irrelevantes. Não me tornam nem mais nem menos mulher que qualquer outra. Agora, quando preciso lutar pelos direitos que me são negados por eu ser uma mulher trans, quando preciso lutar pelo reconhecimento da minha identidade, aí sim, é ai que a questão trans passa a ter relevância. E não só para mim. Ao me envolver em um coletivo feminista passei a sentir a necessidade de expressar questões específicas que afetam as mulheres trans. E passei a procurar, pesquisar por transexuais feministas. Destas, três mulheres tiveram um papel fundamental na minha compreensão sobre a questão das relações entre molheis trans e feminismo. Uma é a Kim Peres, da Espanha, outra foi Hazel Glória Davenport, do México. E outra ainda foi Julia Serano, dos Estados Unidos. A Júlia Serano teve um impacto muito grande na minha forma de enxergar a questão. E isso principalmente porque quando Julia conta sobre si mesma, suas experiências em muito se assemelham às minhas. A Júlia se coloca como uma mulher trans dyke feminista. É uma pena que aqui no Brasil ainda estejamos presas e presos em conceituações do tipo bissexualidade X homossexualidade. Gosto do termo dyke na medida em cabem todas as mulheres que amam mulheres sem que a questão sobre relacionar-se ou não com homens seja delimitador de alguma outra categoria de pessoas. E claro, dyke é uma expressão de androginia feminina o que tem um significado na minha constituição enquanto mulher. Minha esposa é uma árdua crítica da divisão que se faz nos meios lésbicos sobre femmes e butches. O que mais me impressiona nela é sua capacidade de em um dia usar jaqueta de couro, touca e calças combat e no outro sair usando vestidos e maquiagem. Precisamos parar de criar caixinhas para cada subgrupo de subgrupo humano onde se escondem os e as segregacionistas, aterrorizadas e aterrorizados, com medo das nossas diferenças e no anseio de afirmar-se dentro do seu grupinho de iguais perfeitos. As experiências de Julia Serano sobre sua infância e adolescência são muito similares com as minhas. Eu fui o que se pode chamar de uma criança excêntrica, que nunca se interessou ou se apegou a jogos e brincadeiras violentas com garotos. Poucas vezes fui alvo de agressões por parte de meninos na escola por conta da minha falta de masculinidade, ao contrário do que pude perceber com meninos que claramente apresentavam sinais de feminilidade, ao contrário das reações transfóbicas que sinto hoje contra mim. Então quando se fala que mulheres trans sofrem discriminação por não seguirem as normas de gênero, isto parece ser apenas meia verdade. Sinto que estive muito longe de seguir as normas de gênero durante minha infância e adolescência e nem por isso fui alvo de ataques. Porque? Porque embora eu não fosse um garoto masculino, também não era exacerbadamente feminino. É aceitável que meninos não joguem bola, que sejam fisicamente fracos, que não participem de brincadeiras violentas, o que não é aceitável é que expressem feminilidade. Assim, segundo Julia Serano, é pela expressão de feminilidade que mulheres trans são vítimas de violência e abusos. O problema sofrido pelas mulheres trans se dá então pela hierarquização entre os gêneros. Enquanto a masculinidade é vista como natural, a feminilidade é performática. O não reconhecimento das nossas identidades, a negação da nossa constituição enquanto mulheres ao nos negar acesso em espaços femininos por exemplo, se dá fundamentado na suposição de que o gênero das pessoas trans não é autêntico porque não possui relação com o sexo de nascimento. Ao assumir esta suposição a pessoa transfóbica tenta criar uma hierarquia artificial -pela insistência de que o gênero das pessoas trans é “falso”, tentam validar seu próprio gênero como “verdadeiro”. Ora, no nosso dia-a-dia o único aspecto relevante na determinação do gênero das pessoas é sua apresentação social, sua expressão de gênero. Alegar que da morfologia da genitália se pressuponha toda nossa constituição e socialização, nada mais é que uma atrocidade. A atribuição arbitrária de papéis de gênero é sofrida não apenas pelas pessoas trans. A violência sofrida pelas mulheres (e quando falo em mulheres falo em TODAS AS MULHES, trans ou cis) está diretamente relacionada aos valores sociais impostos ao gênero feminino. Um dos pilares de sustentação do patriarcalismo está na hierarquização entre masculinidade e feminilidade. Misoginia é a tendência social em inferiorizar a feminilidade em nossa cultura. Assim nossa sociedade tende a ridicularizar mulheres trans pela sua feminilidade. Isso não se deve apenas por não seguirmos as regras de gênero, mas porque por necessidade abraçamos nossa própria feminilidade. De fato, é a expressão de nossa feminilidade e nossa necessidade em sermos mulheres que se torna sensacionalizados, sexualizados e trivializados por outros. Em uma sociedade androcêntrica, onde homens são considerados melhores que as mulheres e que a masculinidade é superior à feminilidade, não há nada mais ameaçador que a existência de mulheres trans, que a despeito de terem nascidas com o sexo masculino e de possuírem o privilégio da masculinidade, "escolhem" serem mulheres. Ao abraçar nossa própria feminilidade, nós colocamos em dúvida a suposta supremacia da masculinidade. Em ordem a minguar a ameaça que trazemos nesta sociedade androcêntrica, nossa cultura (por meio da mídia) usa todas as táticas que possuem em seu arsenal de sexismo para nos inferiorizar. * A mídia nos hiper-feminiliza: a grande maioria das histórias relacionadas a mulheres trans em programas, novelas ou filmes nos mostra como mulheres exageradas (excessos de maquiagem, vestidos e saltos exagerados) numa tentativa de enfatizar uma natureza "frívola" da nossa feminilidade. Ou retratando mulheres trans como possuindo características depreciativas associadas com a feminilidade tais como fraqueza, passividade, confusão, etc. * A mídia nos hiper-sexualiza: ao criar a impressão de que mulheres trans são motivadas a transicionarem por meros desejos sexuais. * A mídia objetifica nossos corpos: pela sensacionalização da cirurgia de transgenitalização e pela discussão aberta de nossas "vaginas construídas" sem a discrição que normalmente acompanha discussões sobre genitais. Além da forma de tratamento dirigida a nós como "homem que se cirurgia para virar mulher" ou ainda falam de "pênis amputados" como se as mulheres se constituíssem pela ausência de um órgão. Além disso, todas de nós que não se submetemos ou que não queremos nos submeter à cirurgia somo reduzidas tão somente à nossa genitália. Isso por pessoas que sofreram tão grande lavagem-cerebral falocentrista, que acreditam que a mera presença de um pênis pode por em cheque nossas identidades femininas, nossas personalidades e todo o restante do nosso corpo. * A mídia é descaradamente misógina ao tratar de mulheres trans: ao propagar a falsa suposição de que nós nos transicionamos em ordem a atrair homens heteros cisgêneros. Isto, em combinação com nossa hiper-sexualização e objetificação, cria a impressão de que existimos tão somente para servir sexualmente os homens. Dado o fato de a discriminação anti-trans estar junta com o sexismo, não é suficiente para ativistas trans desafiarem as regras de gênero - precisamos também desafiar a idéia de que a feminilidade é inferior à masculinidade. Em outras palavras, por necessidade, o ativismo trans precisa estar centrado no movimento feminista. Alguns podem considerar esta afirmação controversa. Com o passar dos anos, muitas auto-definidas feministas gastaram seu tempo rejeitando pessoas trans, e em particular, mulheres trans, muitas vezes fazendo uso das mesmas táticas que a mídia usa contra nós: hiper-feminização, hiper-sexualização e objetificação de nossos corpos. Estas pseudo-feministas proclamam que "as mulheres podem fazer tudo o que os homens podem" ao tempo em que ridicularizam as mulheres trans por qualquer tendência considerada masculina que possamos ter. Argumentam que as mulheres devem ser fortes e não ter medo de falar, ao tempo em que dizem que as mulheres trans agem como homens quando dizem suas opiniões. Elas dizem que é misoginia quando os homens criam padrões de comportamento e expectativas para as mulheres, ao tempo em que nos rejeitam por não estarmos adequadas em seu padrão de "mulher". Estas pseudo-feministas consistentemente pregam o feminismo em uma mão, enquanto praticam o sexismo com a outra. Nós, mulheres trans precisamos nos unir com feministas pró-trans e aliadxs de todos os gêneros para construir um novo tipo de feminismo, um que entenda que o único caminho que podemos tomar para conquistar a verdadeira igualdade entre os gêneros é na abolição da transfobia e da misoginia. Não é suficiente para o feminismo lutar tão somente por aquelas nascidas com genitália feminina. Enquanto creditamos os movimentos feministas do passado por ajudar a criar uma sociedade onde a maioria das pessoas concordem com a expressão "mulheres e homens são iguais", lamentamos que de fato permanecemos longe de tornar possível dizer que a maioria das pessoas concordem que a feminilidade tenha o mesmo valor que a masculinidade. Ao invés de encorajar as mulheres a fugirem da feminilidade, precisamos aprender a empoderar a feminilidade por si mesma. Precisamos parar de rejeitá-la como "artificial" ou "performática" e no lugar, reconhecer que certos aspectos da feminilidade (como da masculinidade) transcendem socialização e sexo biológico. Precisamos desafiar todxs que dizem que a feminilidade seja sinal de vulnerabilidade ou fraqueza. Precisamos desafiar todos que insistem que mulheres que agem ou vestem-se femininamente estão sendo submissas ou passivas. Para muitas de nós, vestir-se ou agir femininamente é algo que fazemos para nós mesmas, não para outrxs. É nossa forma de reivindicar nossos próprios corpos, expressar sem medo nossas personalidades. Não somos nós, mas sim todxs que assumem que nossa feminilidade é um sinal de que somos sexualmente subjugadas aos homens, quem são xs culpadxs em reduzir nossos corpos a uma mera condição de entretenimento. Não é tão simples para nós empoderar a feminilidade - precisamos também parar de pretender que existem diferenças fundamentais entre mulheres e homens. Isto começa com o princípio de que existem exceções para cada estereótipo de gênero. Este simples fato desaprova todas as teorias de gênero que apontam fêmeas e machos como categorias exclusivas. Precisamos nos livrar da idéia de que homens e mulheres são sexos "opostos", porque ao comprarmos este mito, ele estabelece um perigoso precedente. Se os homens são grandes, então as mulheres devem ser pequenas; e se os homens são fortes então as mulheres precisam ser fracas. E se ser homem significa ter controle de sua própria situação, ser mulher significa viver de acordo com as espectativas do outro. Quando compramos a idéia de que homens e mulheres são "opostos", torna-se impossível para nós empoderar a mulher sem ridicularizar os homens. E não é isso o que queremos. Só quando acabarmos com a idéia de sexos "opostos", e nos livramos dos valores culturalmente derivados relacionados com expressões de masculinidade e feminilidade que finalmente nos aproximaremos da igualdade entre os gêneros. Ao desafiar a transfobia e a misoginia, podemos tornar o mundo mais seguro para todas e todos nós, um mundo onde caiba a livre expressão de gênero. |