essa texto foi uma fala feita no Ovulário “A saúde e os direitos sexuais e direitos reprodutivos são direitos humanos e de cidadania”, promovido pela Coturno de Vênus dia 18/07 em brasília, no Teatro de Bolso do Espaço Cultural da 508 sul.
o corpuscrisis costuma ser um coletivo desde 2005, quando a gente fez o primeiro evento com esse nome. como nada costuma vir do nada, ele veio de um outro coletivo chanado la carnissa, que era basicamente um zine + encontros pra conversar sobre os assuntos do zine. o corpuscrisis agregou mais pessoas que o carnissa (que era um coletivo-de-duas-meninas), e continuou na luta de micropolíticas contra o patriarcado racista, sendo um coletivo de organização precária (o que não significa “desorganização”) e movido pelo afeto (o que às vezes significou ter sido desmovido por desafetos). antes de saber que era uma fala maior eu não tava tão preocupada assim, pensei que era mais uma apresentação rápida do coletivo, principais atividades, um memorial sei lá, mas depois que fiquei sabendo que era pra fazer uma fala maior, me ocupei de pensar o que que eu tinha de importante pra compartilhar, a partir desse rótulo de crisística, num ovulário sobre direitos sexuais ou reprodutivos das mulheres organizado por um coletivo de quem a gente é parceira e com quem temos dividido caminhos e descaminhos há um bom tempinho já, e com muitos outros grupos, coletivos, organizações que também são de mulheres feministas.
pra mim (e se pras outras crisísticas é diferente, me contem), ocupar esse lugar significa a possibilidade de se redefinir como coletivo, de afinar nossa militância com outros grupos e redefinir assim a própria luta feminista. esse também parece um momento de celebração do que a gente tem feito até agora, e um momento de dar um gás novo, uma outra disposição ao que a gente ainda pode, tem que fazer e vai fazer. e mesmo que se olhando pro quadro grande, externo, das grandes políticas institucionais, políticas públicas e instâncias de poder despersonalizado, pareça que não é um momento de celebrar porra nenhuma – porque a gente tem que estar cada vez mais atenta e dormir pronta pra guerra contra essas armadilhas que tentam sufocar, oprimir e aniquilar a gente, como cpi do aborto e outras garras de criminalização da soberania sexual ou reprodutiva de nós, mulheres – , ainda assim vejo esse encontro como uma ponte de combatividade pra gente chegar lá no lugar da celebração. (valeu, entidade Pollyana, se encorporando cada vez mais!)
acho que tô insistindo nessa coisa da celebração porque tenho encontrado algumas mulheres, e dessas muitas não são feministas, pra quem esse tipo mais clássico de feminismo, que é o que chega aí todo deturpado pela grande mídia corporativa dos machos, é um feminismo em que a gente não tem o direito à tranqüilidade, só tem o dever da ira. eu, como filha de Iansã, tenho cultivado bastante espaço pra essa motivação combativa que a ira pode por pra jogo, mas isso ao mesmo tempo em que cuido de uma gastrite há uns anos (pra ela ir embora!). a ira não pode ser a única base da nossa militância, porque pode deixar a gente doente. e essa é uma questão de saúde tão vital pra gente quanto a garantia estatal da autonomia reprodutiva. agora tenho pensado mais em saúde do que costumava pensar, mas principalmente de minha saúde como feminista. também por causa dessa minha onda de viver uma militância que seja integrada com os sentimentos ou noções que são mais preciosas pra mim, já que essa integração e essa integridade é que a mim me garantem que o pessoal só vai deixar de ser político quando o que a gente fizer for desconectado do que a gente é e de como sente, e por isso vai ser falso como as grandes farsas de modos de vida, militância e relações que desconectam totalmente as pessoas delas mesmas pra se conectar com outra coisa.
mas acho que o clique de pensar mais ainda sobre saúde aconteceu depois de ouvir um relato sobre o fazendo gênero, aquele seminário que aconteceu em santa catarina ano passado. lembro que no ano passado ouvi Maria Angélica falar, depois de voltar do “fazendo gênero”, sobre outras feministas conhecidas ou amigas dela, que estavam todas doentes.
a lesbofobia, a transfobia e a homofobia querem deixar a gente doente. o patriarcado racista quer deixar a gente doente. o capitalismo quer deixar a gente doente. o especismo, a intolerância religiosa, a hegemonia de produção de conhecimento, a opressão heterossexista quer deixar a gente doente. a militância é uma das maneiras que a gente achou de sobreviver a isso! não só sobreviver nesse sentido de anos que você ganha depois que a parada cabulosa aconteceu e foi tratada e que acaba parecendo mais uma sub-vivência, mas sobrevivência no sentido de qualidade da vida que a gente vai ter, vida pra ser vivida muito além, e não aquém. ou não mais aquém.
quer dizer, como a gente pode tomar cuidado com essa nossa luta, que é uma luta contra o que quer deixar a gente triste, doente e morta, pra que ela não seja mais uma coisa que deixa a gente doente, triste, morta?
tem um poema da lucille clifton, que é uma poetisa preta de uns 60 e poucos anos, que diz assim:
''você não vai celebrar comigo
o que moldei num
modo de viver? não tive modelos.
nascida na babilônia
nascida não-branca e mulher
o que eu vi pra ser, além de mim mesma?
eu inventei
aqui nessa ponte entre
pó-de-estrela e barro,
essa minha mão; vem celebrar
comigo que todo dia
alguma coisa tentou me matar
e fracassou.''
o nome do poema é justamente “você não vai celebrar comigo?”. uma outra poetisa negra, nossa amada amiga ellen oléria, que tá aqui desse lado do mundo (a lucille clifton tá lá do outro lado, nos estados unidos), costuma cantar uma música dela que diz assim: “minha superação foi com muita dificuldade / não é contando por contar, não é por vaidade / mas peito pra encarar a vida loka com coragem / não é pra qualquer um”. não é pra qualquer um, mas parece que é pra qualquer uma. a gente é guerreira mesmo. e acho muito massa que essas duas mulheres se conectem por essa ponte de experiências mesmo tando tão afastadas geograficamente, separadas por uma diáspora linda que é fruto de um processo horrível daquele algo que vem tentando matar a gente todos os dias desde cinco séculos. pra mim, só de poder sentir essa conexão fluindo e deixando a gente fluir, permitindo a gente existir mais inteiras, mais livres, já esquenta meu coração.
esse calor não existe “apesar” de saber que o nome desse algo que todo dia tenta matar a gente pode ser racismo; pode ser lesbofobia; pode ser loucura; pode ser estupro corretivo; pode ser “fecha as pernas, menina”; pode ser heteronormatividade compulsória; pode ser a sensação desesperadora de sentir seu lugar no mundo sendo roubado pela incompreensão, pela ignorância, pela raiva, pela falta de cuidado; pode ser também anorexia; pode ser ataques diários a sua auto-estima; pode ser a impossibilidade de fazer um aborto imposta por interdição financeira, moral, religiosa ou outra (todas misóginas)...
o calor que me sustenta, move, alimenta, é um calor que existe a partir da possibilidade urgente necessária de silenciar esses nomes todos. são os nomes que têm tentado silenciar a gente, amarrar nosso corpo, adestrar nossa alma. resistir é difícil, eu também tô enfrentando alguns desses ataques que incidem direto na minha saúde, mas saber que me manter inteira e sã é ação direta contra o patriarcado racista heterossexual carnívoro cisgênero cristão especista de capitalismo impregnante me dá mais força ainda pra ficar cada vez mais saudável, pra acordar sorrindo, pra gozar mais, pra dar gargalhada bem alto mesmo, pra cozinhar com as amigas e ir batucar na rua pelo fim da criminalização das mulheres e pela legalização do aborto.
que nem é uma coisa feliz pra gente batucar não. demandar do estado que ele faça abortamentos de maneira gratuita pode significar reforçar, ou pelo menos pagar algum tipo de tributo, a história de roubo da nossa soberania reprodutiva, que era antes exercida com a participação indispensável das parteiras, que também eram aborteiras. quer dizer, soberania sexual das mulheres era uma coisa nossa. e com certeza, demandar aborto legal do estado pode significar negociar o poder do estado sobre nossos corpos de uma maneira que merece muita atenção, que é a partir da cessão dessa nossa soberania reprodutiva ao aparato médico, científico, tecnocrata e legal das intervenções cirúrgicas (ou químicas). e definitivamente pode significar reforçar, ao invés de romper com ela, a estrutura mesma do estado...
outro dia na água mineral eu y Joelma conversamos sobre o caráter “redução de danos” que a militância tem: é óbvio que vai ser mais massa quando a gente acabar com essas idéias e práticas de aglutinação e deliberação política centradas na figura de uma máquina de representação que é fajuta porque funciona a despeito de quem ela tinha que representar ao mesmo tempo em que cria a idéia estranha de que alguém pode falar por outras pessoas.
vai ser muito mais massa assim, quando a gente não usar mais essa máquina pra se organizar e viver em comunidade, mas enquanto a gente tiver aqui na jornada dupla e simultânea de pra plantar o jardim dos nossos sonhos e desejos e ao mesmo tempo que tem que derrubar aquele setor habitacional do vice-governador (que chama de setor noroeste o que vem sendo, por 60 anos, a reserva ecológica e comunidade indígena Bananal, ou Santuário dos Pajés), a demanda por “aborto legal seguro e gratuito” vai continuar urgente e imprescindível.
o que me lembra a conceição evaristo, com aquele poema lindo dizendo que “a noite não dorme nos olhos das mulheres”... quer dizer, tem muito chão ainda. e justamente por isso a gente tem que garantir a nós mesmas que vamos estar descansadas, no dia seguinte, pra seguir caminhando (ou na noite seguinte, pra quem gosta de dormir de dia).
e enquanto caminha a gente dança... eu acho que meus olhos gostam de dormir como meus pés gostam de dançar, e como o corpo gosta de descansar, e nossa alma gosta de sonhar enquanto tá dormindo com uma mulher muito querida depois de trepar horas e horas... e aí muitas noites podem dormir nos nossos olhos.
enfim, não sei se tenho mais muita coisa pra dizer, mas quero repetir que acho mesmo que a gente estando bem, inteira, tranqüila, comendo comida sem veneno e sem opressão, gozando e dando gargalhada, lutando e dançando, cantando e berrando, e também dormindo com silêncio e no quentinho, a gente não só sobrevive ao patriarcado racista, mas vive além dele, pra fora dele, acabando com ele. que quer acabar com a gente todo dia, mas só fracassa.
e outros recados mais rápidos:
- site novo do kk feito por alice gabriel, nossa mais nova mestra! lindo, todo roxinho, com barra de bucetagem: www.corpuscrisis.net
- em celebração do 25 de julho, dias 23, 24 y 25 acontece o primeiro festival cultural da mulher afro-latinoamericana e caribenha, promovido pela Griô Produções, Fórum de Mulheres Negras do DF e Cojira/DF – Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial
- misha, a mais nova pretinha cotista das ciências sociais, tá de parabéns! vamo invadir aquela academia branca pra denegrir tudo! valeu, sapateira!
- pra quem tá interessada em alternativas sustentáveis à produção de lixo descartável e no uso de tecnologias não contaminantes e misóginas de cuidado com a menstruação, oficina La Sangre lá em casa, na segunda-feira! a gente vai fazer uma oficina de absorvente de pano y conversar sobre copos menstruais, como usar, onde comprar... além de finalizar a produção do zine.
- agradecer às coturnas pelo convite, pelo cuidado, pela parceria... axé!